terça-feira, 31 de março de 2009

A porta


Sorte a maçaneta da porta não ser como nos livros e filmes, daquela que se pode enxergar o outro lado pelo buraco da fechadura. Achava bem e bem que não se faziam mais fechaduras tais, uma vez que as chaves não eram mais de metal pesado e os mecanismos do mundo havia muito estavam mais delicados e mais sutis. Só as pessoas embruteciam, ela acreditava. A porta permanecia de madeira, coberta por uma pele de tinta escura, com a maçaneta prateada perto da borda. Sorte não ser uma vidraça, um portal, que permitisse enxergar do outro lado. No outro lado, ela sabia o que encontraria. Por isso mesmo não queria ver, e observava a porta fechada, esperando que ela nunca mais se abrisse. Em vão, claro. Afinal, não é essa a razão de ser da porta? Abrir-se. Ou seria se fechar? Pois se fosse para abrir, mais fácil seria um buraco, um pórtico... Então a função real da porta era aquela mesma: abrir quando preciso e fechar quando preciso. Ela sabia que ele a estava traindo. Não a esperava naquele horário, achava que ela estaria em outra cidade, seguramente longe. Mas ele teve o cuidado de fechar a porta. Talvez para respeitar o resto da casa. Respeitar? Não trancou, por que também não era assim tão cuidadoso.

Havia ruídos do outro lado. Não era uma porta grossa, inculta – deixava trespassar o som pelas suas frestas. Uma rachadura na pele de tinta vibrava quando o barulho era mais alto. Mas aquele som não era alto. Era abafado, criminoso. Ele tinha medo! Mesmo sabendo que ela estaria longe, em outra cidade, pensando nele sim, mas sem poder enxergá-lo. Ele escondia por baixo das cobertas os gemidos, aquele cachorro. As vezes, de tão abafados, os gemidos pareciam choro. Tão doloridos e escuros. Ela imaginava os dois na cama depois da porta. A imagem queimava, e a outra adquiria todos os tipos de forma, sempre voluptuosa e vulgar. Sempre terrivelmente bela, terrivelmente perfeita, mas vulgar. Porém, enquanto a porta estivesse fechada, era possível acreditar que ela se enganava, que não era nada daquilo. Era possível acreditar em um relacionamento que parecia sempre íntegro, sempre completo.

“ Preciso abrir essa porta”, pensou. A mão dançou antes de se firmar na maçaneta. Podia ir embora e voltar depois, no tempo combinado, como se nada houvesse acontecido. Esteve viajando esse tempo todo, nem suspeitava. Ele não saberia, continuaria a tratando como sempre tratou. Ela continuaria distante. Os ruídos do outro lado se intensificaram e o rasgão na pele da porta vibrou até quase se soltar. Uma risada? Agora parecia uma risada. E depois alguém falando em outra língua. Ela estranhou e aproximou-se mais da porta. Era um homem. Um homem falava em outra língua. Talvez francês. É, ele sempre teve aquela queda pela França. Mas um homem? De repente, o homem começou a cantar. A cantar em francês. Ela não conseguiu mais se segurar. Abriu a porta de uma vez e com grande estrondo. Deparou-se com seu marido enrolado na cama, debaixo de cobertores, com cara e nariz de gripe, assistindo um filme francês.

2 comentários:

  1. A Elisa escreveu um texto que me lembra esse, faz alguns dias. Ou eu li faz alguns dias, não sei bem.
    Estou tentando não repetir o comentário e nem fazer como a pessoa ao meu lado que leu o texto e disse que ela deveria ter olhado embaixo da cama...

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pode falar, eu não estou ouvindo