quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Orweliana (ou a ditadura do entretenimento)


O homem se acercou do prédio com a discrição dos culpados. Subiu a rampa lateral e entrou por uma porta escondida. Depois, seguindo uma seqüência interminável de corredores e escadas, chegou finalmente a uma saleta, onde dois homens e uma mulher o aguardavam. Estavam todos muito preocupados.
- Você demorou demais, Jorge.
- Desculpem-me, tive que despistar os guardas do churrasco matinal.
- Trouxe o material?
- Trouxe. Mas aqui é seguro?
- Sim.
- Vocês checaram a tv a cabo?
- Checamos.
- Chequem de novo.
A mulher e outro homem se aproximaram do canto da saleta, onde havia uma televisão embutida e ligada. Era impossível desligá-la. O volume também não podia ser desativado, mas fora reduzido ao mínimo, deixando apenas um sussurro ambiente. Pela tela, via-se as peripécias de um programa de auditório. A mulher checou mais uma vez, como Jorge havia pedido, depois voltaram a se reunir:
- Está no volume mínimo. Esperamos pela hora do concurso de calouros?
- Não, melhor começar agora.
Ele tirou de sua mala colorida um livro grosso e velho. Por um instante, fez-se silêncio respeitoso. Então Jorge começou a dançar freneticamente:

- Finjam que estão dançando

Os outros o acompanharam. Ao mesmo tempo, cochichavam entre si, de olho na primeira página do livro:

- O que é isso?
- É uma gramática de Sânscrito Teológico Clássico
- Sânscrito Clássico? Nossa! É muito difícil?
- Muito difícil – disse Jorge e os quatro se arrepiaram de prazer.
- Vai demorar muito para aprendermos?
- Talvez anos – respondeu Jorge e a mulher sentiu um calor inebriante entre as pernas.
- Vamos ter dificuldades?
- Talvez nem consigamos – e dessa vez os quatro não puderam conter uma exclamação de prazer marginal.

A exclamação talvez tenha sido alta demais. Ou talvez eles já estivessem sendo espionados desde antes. Em um segundo, a saleta foi invadida por policiais truculentos vestindo tanguinhas de crouchê. Os policiais prenderam os quatro e esperaram a entrada do sisudo inspetor, famoso por usar um cocar de índio e por gostar de sexo com anões e chihuauas.

- Finalmente achamos você, Jorge. Estamos em seu rastro há meses – disse o inspetor alisando seu bigode de mexicano postiço.
- Quem me denunciou?
- Isso não importa agora. O que vocês faziam? Ah... Sânscrito Teológico Clássico? Material da pesada hein. Vocês têm idéia de quantas leis municipais quebraram só de saber o que é Sânscrito? A barra vai pesar para vocês, meus amigos. Sargento, leve esses homens em cana pelo artigo 46 do código civil. Vocês atentaram contra a Lei do Menor Esforço. A pena mínima é de 10 anos de reclusão e máxima é de trabalhar como apresentador em Programas infantis da Globo.
- Não! Tudo menos isso!
- Vamos, policial, leve todos pro camburão!
- Mas inspetor, começou o concurso de calouros!
- É mesmo? Então aumente o volume dessa televisão.

2 comentários:

  1. Um texto que conseguiu aliar humor e reflexão. Afinal, complicado fazer um texto envolvendo sexo com chihuahuas e ainda assim manter um teor questionador. Sério, eu já tentei. Boa, cara.

    ResponderExcluir
  2. Eu fico ainda mais acanhada em tentar esboçar algum projeto de texto quando leio os seus. É sério... eu sou sua fã! rs

    ResponderExcluir

pode falar, eu não estou ouvindo