sexta-feira, 18 de março de 2011

Nós e os lugares




Nós e os lugares convivemos reciprocamente, quase sempre. Mas, por vezes, gostamos de culpá-los pelas pessoas, e descrevê-los como velhas namoradas: feios, tristonhos, acabados. Os lugares, por sua vez, não nos culpam por nada. Mas podem nos olhar com desdém, como as igrejas e os campos abertos, como as cachoeiras nos olham; desdém por sermos pequenos e efêmeros. Também podem nos olhar com mesquinhez, nos prensar contra a parede e nos privar o ar. Alguns lugares podem nos asfixiar. Há certa dose de crueldade no modo como os lugares nos habitam, e certa dose de ingenuidade no modo como os habitamos. Por vezes, nós nos afeiçoamos tanto aos lugares que os repetimos dentro de nós, e os levamos conosco a outros lugares, e os guardamos como preciosidades infantis. Por vezes doem nos escravizam: voltamos aos lugares como se voltássemos a nós mesmos. Mas também os odiamos como crianças machucadas: se nos prendemos neles contra a vontade, ou se presenciam, silenciosos e frios, atos violentos de nosso drama. Os lugares, porém, não se afeiçoam. São levianos e se abrem a qualquer um, como viúvas carentes. Os lugares não têm escrúpulos. Então nós precisamos trancá-los, privá-los de sua liberdade, com chaves, portas, cancelas. Os lugares são nossos cativos. Talvez guardem, no íntimo de sua arquitetura, um rancor doentio: porque nós os podemos deixar quando quisermos e eles não. Porque podemos sair, trocar de lugar, mudar-nos, e eles não. Eles só saem se nos afeiçoamos, e se os levamos conosco na recordação. Só assim. Os lugares dependem de nós mais do que dependemos deles. E quando vamos embora, seja pela porta dos fundos ou pela porta dos céus, seja embebido em distância ou em morte, os lugares permanecem. Mantém-se impregnados de nós, manchados por nossos sentimentos e atos, cheirando aos nossos corpos, modificados por nossa presença. Nossas lembranças dos lugares vão lentamente fenecendo – são efêmeras como nós. Mas as lembranças dos lugares são eternas. Se marcamos nosso nome em suas paredes, se encostamos nossa história em seus alicerces, nossa marca fica eternamente. Para sempre eles se lembrarão de nós, como pele ressequida sobre os ossos. E quando nós formos embora, para lugares distantes e novos, os velhos lugares ficarão imóveis, silenciosos, em seus lugares.

3 comentários:

  1. e de vez em quando, nós é que nos tornamos lugar dos outros.

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  2. Pague os royalties ao Getty Images e obtenha suas fotos sem essa marca d'água.

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  3. Também dá pra cortar a marca d'água no paint, mas acho que deve ser ilegal.

    Belo texto, por sinal.

    E olha, um peixe!

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pode falar, eu não estou ouvindo