quarta-feira, 1 de outubro de 2008

como desmontar uma nuvem




ela era menina ainda, talvez. Raça daquelas meninas que só nascem nos galhos mais altos da árvore genealógica. O mais provável, pensei agora, é que nunca deixaria de ser menina, nem com oitenta e oito anos, nem depois de mortos seus melhores amigos e toda sua família. Sempre inhazinha. Diminutiva, brincadoirinha. Mas sabia desmontar uma nuvem. Aliás, sabia como ninguém. Tinha lá toda sua arte, um jeito assim de fazer com o canto da boca, uma certa mandinga de dedos e uns passos de dança. Era uma plena desmontadora de nuvens, a tal.

Os outros, seu acompanhantes, malemal conseguiam alcançá-la. Óh deus, diziam. Estavam, a maioria, muito pouco dispostos para com essas aventuras. Queriam rudimento, soberba e gozo. Queriam deitar-se por cima dela e cobri-la. Só que falhavam quase sempre na tal coisa de desmontadora de nuvens. Ficavam desajeitosos quando ela lhes mostrava sua arte e iam embora, dizendo: " Ora guria dos infernos".

Eu por mim achei aquilo explêndido. Não por compreender, mas por estar, por aquelas épocas, montando meu compêndio de raças inequívocas. Ouvi-a contar de suas angústias afinadas, percebi mesmo uma dose de remorso no líquido em sua boca, mas não me retoquei. Estava ali como um cientista. Ela então conversou comigo, descendo de sua beleza e de sua demora:
- Sabe, zé, as coisas que eu faço não me contornam.
- E poderiam?
- Pois que sim. Deveriam, aliás. Fácil e fácil seria, se pudessemos ver os outros pelo que fazem.
- Poder podemos. Não sabemos ao exato o que está no fundo de cada gesto. Isso me irrita as vezes
- Você se irrita com coisas engraçadas
- Queria saber também dessa sua arte, da arte de desmontar nuvens.
- Ora, zé, você já sabe.
- Suspeito que não.
- Sabe sim. É o que você também vive fazendo, a miúde, por essas suas ruazinhas.
- Eu chamaria de outra coisa, essa minha arte.
- Chamaria de que?
- Chamaria de montar nuvens.
- Pois que seja! Eis o primeiro passo para tê-las desmontadas!

3 comentários:

  1. Fiquei pensando tanto sobre mim com esse texto.. Se eu sou uma menina das que só nascem nos galhos mais altos da árvore genealógica.. No que eu sei fazer com tanta maestria,como ninguém.. Se as coisas que eu faço me contornam... contornam? E ainda, e mais grave, como deixar de ser menina... no diminutivo...

    Zé, você é demais! :P

    bju

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  2. Adorei o texto zé e estou tentando nao me identificar demais com ele pra poder comentar sua imensa habilidade de falar sobre as pessoas e tudo mais que elas sentem.
    Quem sabe não seja esse o motivo de todo mundo se enxergar um pouquinho nesses seus personagens tão vibrantes,próximos da gente e ao mesmo tempo tão reais, tão cheios de vida...

    Cada vez melhor!

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  3. Muito mais massa que a menina que roubava livros...

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pode falar, eu não estou ouvindo