terça-feira, 14 de julho de 2009

O dono da rua


Qualquer pessoa que viva em uma cidade razoavelmente grande deve ter uma história sobre vigias de carros. E, quase sempre, eles são vilões. Afinal, é muita folga da parte do cidadão se apossar de um espaço público e cobrar por um serviço na base da ameaça: se você não me paga, eu risco seu carro. Como a indulgência acomodada é uma prática comum aos brasileiros, esses vigias acabam sendo vistos como um mal necessário. O brasileiro adora a idéia: paga uns centavos e diz que o cara, pelo menos, está trabalhando e não roubando. Com essa conivência, os salafrários se tornam folgados, abusam, desrespeitam. No fundo todos sabem que ali ninguém vigia nada, que aquilo é apenas um acordo tácito, um pré-entendimento. Ninguém está resolvendo o problema de ninguém: de um lado, o vigia continuará pobre e “trabalhando” por baixo dos panos e, do outro, o dono do carro continuará com medo de ser roubado, continuará indiferente à pobreza alheia e continuará acreditando que gestos assim garantem seu lugar no céu.

Mas, na frente do restaurante onde eu às vezes almoço, existe um senhor que vigia carros. Ele está lá de manhã e de tarde, em horário comercial. Veste uma camisa de sinalização muito puída encima de roupas ainda mais puídas. É negro, para lá dos 40 anos, não tem dentes. Esse senhor é o dono da rua. Ou pelo menos se sente como tal, imbuído de uma autoridade que ninguém lhe outorgou e que poucas pessoas admitem. Mas o tal vigia não fica sentado em uma cadeira à sombra, assobiando quando alguém pára o carro. Nada disso. Eu o observo do restaurante, quando almoço. Ele está sempre em movimento. Ajuda a senhora a estacionar, faz sinal para que os carros parem na faixa. Usa um apito como um guarda de trânsito. Certa vez,reclamou de um executivo que havia jogado um palito de picolé no chão. Apita longamente quando alguém estaciona em lugar proibido. Sorri para as crianças que saem dos bancos de trás, conversa com os lojistas, canta as mocinhas. Fico pensando no que seria daquele homem sem sua atribuição. Onde ele estaria agora? Ninguém lhe deu um diploma de vigia, ninguém lhe cedeu os direitos sobre a rua, ninguém lhe explicou as leis de trânsito nem é de sua incumbência aplicá-las. Mas ele se imbuiu daquilo, fez sua a responsabilidade. E é o único que parece realmente se preocupar. Não gosto dos vigias de carro no geral, mas gosto daquele. Vejo a vergonha em seus olhos quando as pessoas ignoram sua autoridade. Quando ele apita e os carros não param na faixa, ou quando alguém se apressa a tirar o automóvel da vaga para não ter que lhe pagar nada. O desapontamento arqueia suas sobrancelhas. Enquanto o governo está postergando suas funções e os fiscais sentam sobre a própria soberba, aquele homem, que não tem nada haver com nada daquilo, apita para que um grupo de estudantes não destrua a lixeira pública de sua rua.


2 comentários:

  1. Isso sim é assumir autoridade, não? E é impressionante como as pessoas que realmente tem autoridade e poderiam usá-la preferem gastar esse poder de outras formas...

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  2. Zé,

    Seria muito te pedir para ter acesso a "Um livro muito vermelho e outros contos"?! Como faço?! Me envie um e-mail me contando? Anote-o:
    leticiacosta@bol.com.br

    Ficarei no aguardo!

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pode falar, eu não estou ouvindo