Algumas experiências distintas me fizeram matutar sobre os meus conceitos de bondade, educação e bom-mocismo. Meus pais se esmeraram em me ensinar os segredos da cordialidade e, até aqui, nunca tive por que reclamar. Eles sempre se esforçaram para que eu não fosse uma dessas pessoas cuja educação varia segundo as circunstâncias e os interlocutores. Educado, na filosofia de mãe e pai, é aquele que se porta como tal tanto no trato com o lixeiro quanto com o papa, tanto numa comemoração de aniversário quanto num assalto à mão armada. Isso demonstraria caráter e concordo imensamente com a idéia. Só agora, porém, começo a notar um sutil exagero nos ensinamentos familiares. Talvez por um ranço cristão, talvez por resquícios de subserviência colonial, acabo por tentar abafar com excesso de zelo e maciez todos os problemas do mundo, das desigualdades sociais às tiranias alheias. Explico melhor com as experiências:
Decidimos pintar a casa. Meu pai conhecia um tal pintor excêntrico metido a filósofo, cantor e falador. O cara era realmente uma peça rara. E meus pais, entre encantados e educados, acolheram a peça com todo carinho. Conversavam com ele no sofá de visitas, buscavam em casa, preparavam lanche. Meu pai prometeu esfihas do Habib´s, dizia aos vizinhos que tinha um pintor-artista trabalhando na casa. E o rapaz realmente era dado às filosofias. Enquanto estava pintando, ninguém tinha sossego: falava de tudo, explicava sobre as plantas, os astros, a música, a política. E todo mundo aplaudia alegremente, embora fosse complicado entendê-lo.Resultados: tínhamos que ficar de olho, por que na primeira chance, o cara parava de pintar e pegava o meu violão para tocar. Ele prometeu uma surpresa e, tcharanran, pintou de rosa super-choque os beirais do jardim quase levando minha irmã ao pronto-socorro. Levou meu pai às raias da ira quando foi flagrado lendo a Vejinha enquanto lanchava. Por fim, o trabalho acabou e o pintor-poeta não saía mais de casa. Agora visita meu pai três vezes por semana, inclusive bêbado e inclusive depois das 22h, para filosofar.
O chefe decidiu reformar o trabalho. Fomos todos alojados nos sótãos (a Associação fica em uma casa velha ao estilo norte-americano com sótão e roupeiro). As portas da frente foram retiradas e era preciso chamar o pessoal do alarme para desativá-lo. Eram quase seis da tarde, final de expediente, e o problema não havia sido resolvido. O chefe então pegou o telefone, ligou para o pessoal do alarme, e o que se seguiu foi uma apresentação fenomenal de rispidez. Ele falou que era cliente deles, que tinha direitos e que eles tinham duas opções simples: ou mandavam um técnico em vinte minutos ou podiam passar para o pessoal de dispensa por que a associação deixaria de ser cliente. Detalhe: em nenhum momento ele se identificou como chefe, nem falou que era filho de fulano ou presidente de algum lugar. Vinte minutos depois, o técnico estava na porta. Alguns dias mais tarde, tivemos embaraços com o modem. Qualquer coisa abstrata envolvendo senhas de liberação, Brasil telecom e outros tipos de tragédias anunciadas. O chefe não estava e quem teve de tratar foi o técnico da Agos. O técnico da Agos é o poço de paciência por excelência. Uma prova de sua tolerância absurda é o fato dele ter nascido em Ipameri e ter um carro japonês. Isso já diz muito. Entretanto, a mistura de paciência, educação e serviço de atendimento da Brasil Telecom resultou em dois dias esperando pela volta da Internet.
Nossa perspicaz geração frases-feitas-de-orkut celebrizou a pérola: “cada um tem de mim exatamente o que cativou” que, segundo algumas fontes, é do Ghandi, segundo outras do Einstein, segundo outras do Bernardinho, técnico da seleção de vôlei e, segundo algumas, é minha. Enfim, determinar a origem das frases-feitas de orkut é tão complicado quanto entender por que as pessoas as colocam em seus perfis. De qualquer forma, não sou adepto e nunca serei dessa idéia. Pautar suas próprias atitudes segundo as atitudes dos outros é afirmar categoricamente que seus próprios conceitos são maleáveis e que você possui caráter de lagartixa. É preciso adotar uma conduta própria, individual, característica, que seja adaptável, é claro, mas que não dependa de fatores externos para se expressar. O problema, porém, é o exagero da contra-proposta: ser excessivamente educado pode ser tão prejudicial quanto ser excessivamente grosso. Muitas vezes o excesso de educação demonstra imaturidade, covardia ou mesmo um sentimento disfarçado de culpa pelas diferenças. Como diz a Logosofia, é importante “ser bom mas não ser tolo”. E aprender isso anda sendo bastante difícil.
Um dos grandes desafios da vida moderna é conciliar a boa educação e o respeito pelo próximo com a existência de uma coluna cervical que impeça que você seja maleável demais e te tratem como um trouxa.
ResponderExcluirBoa análise.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirE a gente fica nessa: com um acaba sendo grosso, com outro acaba sendo maleável demais... sempre na tentativa de encontrar o ajuste fino dessa coisa complicada.
ResponderExcluirUma análise interessante é a de que a maioria dos brasileiros não sabe falar "não". Seja para dispensar um garoto que está dando em cima de uma menina, ou seja para falar a uma pessoa que você não está livre e que deve ir embora, mas acaba dizendo "tá cedo, fica mais um pouco". Por fim, crescemos com o medo de ouvir esse "não", pois ninguém nunca nos fala abertamente e fomos educados a não dizê-lo.
Mais uma vez. Excelente texto. Já fui confrontado muitas vezes com situações semelhantes. E realmente acho que isso tem muito a ver com um habitus de classe ao qual somos submetidos diariamente, já diria Guiddens. Isso me irrita às vezes... pessoas que se acham no direito de dizerem o que bem entendem... e patéticos, como eu, que pedem desculpa por estarem certos. E a frase "Sejas bom, mas não sejas tolo" é da minha vó. Ela me dizia isso desde criança. Difícil de aprender.
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