terça-feira, 1 de junho de 2010

não compreensível



Eu estava no ponto de ônibus, mergulhado no torpor que surge quando tudo se movimenta menos nós. O fim marítimo do dia, o trânsito ligeiro, a conversa de desconhecidos, tudo pairava ofuscado, como se dentro de uma lembrança ou como se eu estivesse prestes a adormecer. Olhei para o alto, acima de minha cabeça, para a copa de uma mangueira, e me lembrei da namorada: nós dois gostamos de ver o céu entre as copas das árvores. Quando voltei os olhos, havia uma mulher parada à minha frente.Ela me olhava de modo incisivo e demorou até que eu percebesse que falava comigo. Talvez estivesse falando há muito tempo e eu, desatento, não percebi. Era uma senhora muito pequena, mínima, muito escura sem ser negra. As roupas envelhecidas pareciam casca de árvore, os pés eram grossos e enraizados. Mas o que me surpreendeu foi que, apesar de fixar a atenção nela e ouvir sua voz, eu não conseguia compreendê-la. Passei as mãos nos ouvidos para me certificar de que não estavam com fones. Não estavam. A mulher repetiu a pergunta, mas eu tornei a desentendê-la. Falava português, mas a pronuncia se atropelava, as primeiras palavras encavalavam-se nas últimas, batiam nos poucos dentes da boca, misturavam-se à saliva. Tive que me aproximar e, educamente, pedir que a pergunta fosse repetida. As pessoas ao meu redor, olhavam curiosas; a menina bonita que vinha do colégio, os rapazes de óculos e roupa social, a dona de casa cheia de sacolas. A mulher se impacientou. Depois, pareceu muito triste e cansada. Notei que tinha mãos grossas, dedos largos. Tentei perguntar para onde ela queria ir mas a resposta não fez o menor sentido. Até que meu ônibus chegou. Pedi desculpas e entrei. Não queria nemconfessar o alívio nem aparentá-lo. Mas olhei por muito tempo, enquanto o onibus entrava no trânsito e se afastava. Olhei aquela mulher tão pequena e inumana, sozinha no meio de tantas e tantas pessoas que não a entenderiam, que não a enxergariam, que não poderiam apontar-lhe o caminho. Pessoas como eu. E o desespero que senti inundou minha cidade inteira.

Um comentário:

  1. Como eu, você e o Bill Murray sabemos, a comunicação é impossível.

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pode falar, eu não estou ouvindo