quinta-feira, 3 de março de 2011

Não tenho mais que uma opinião parcial sobre o Oriente Médio




E de repente, como se do nada, assistimos a milhares de pessoas se revoltando contra seus governos, sublevando países inteiros, derrubando ditadores. Como se do nada. Num dia, Egito, Tunísia, Líbia, são nações distantes e exóticas que nunca apareceriam nos noticiários, mas já no outro, estampam capas de revista e manchetes de jornal.De repente, há centenas de jornalistas tecendo análises sobre as revoltas, enquanto dúzias de comentaristas se movimentam com desenvoltura entre nomes antes desconhecidos: Mubarak, praça Tahir, Zawiyah. E países desconhecidos se tornam assunto das conversas de almoço, dos comentários de corredor, da vida cotidiana. Assim, como se do nada.

Mas é claro que não foi do nada. Há 30 anos um homem domina o Egito, e só agora eu sei seu nome. Tanta coisa deve ter acontecido sem que eu soubesse, tanto fio para tecer contexto, tanta sobreposição de detalhes, que fica difícil sequer suspeitar. E ao ver todos os comentários e as letras vermelhas nas manchetes, eu me entristeço. Não sei se seria essa a reação esperada. Faz um tempo já, acode-me um tipo distinto de tristeza, antes insuspeita: a tristeza de constatar que eu não sei o que acontece! E talvez nem possa saber.

Porque não há modo do jornalismo dar conta da realidade; é uma matéria-prima ingrata demais, impossível de domesticar. Quanto mais estudo, mais percebo que a última função da profissão que escolhi é a de mostrar a realidade. Não por mal, não só por que existem interesses envolvidos, mas pela simples, sincera e evidente incapacidade de tal feito. Seria medir o universo com uma lupa. Os fatos, as notícias, os acontecimentos terão sempre de ser transmitidos como opiniões, ainda que se disfarcem e implantem o silicone da neutralidade, da imparcialidade, etc. Serão sempre opiniões, e estarão sempre descontextualizadas. A injustiça está em querer dos jornalistas a realidade, se não a queremos nem de nossas namoradas e nossas mães. Se não a exigimos nem de nós mesmos! Existe certa crueldade implícita na fé – cega e nunca confessada – com que as pessoas acreditam nos jornais. Existe crueldade no modo como acatam aquilo e transformam em assunto para suas vidas, como dizem duvidar mas, no fundo, acham nos noticiários um atalho para o conhecimento; ao invés de construí-lo, tomam-lhe emprestado.

Mas a tristeza não vem dessa limitação em si. Vem da constatação – cega e ainda não confessada – de que talvez não haja outro modo. Eu queria muito falar sobre o Egito, sobre Trípole, sobre as revoltas, mas sei que qualquer coisa que eu escrever estará fora de contexto, e corre o risco de ser ridículo, porque é impossível que eu realmente saiba o que se passa. Os jornais me dão apenas opiniões parciais, apenas defesas de pontos de vista formados e nutridos em outras realidades. Mas se não fosse por eles, eu nem saberia que houvera revoltas e quedas de poder. Fica assim a impressão de que somos todos reféns de contos de fadas, e não haveria modo de saber do mundo sem mistificá-lo. Por isso a tristeza. Pela suspeita sutil – cega e nunca confessada – de que uma característica tão bela e importante dos homens, a sua singularidade, a sua idiossincrasia, talvez torne o mundo nunca totalmente compreensível.

4 comentários:

  1. Geopolítica global é como um relacionamento, você nunca consegue saber o que realmente está acontecendo e quando tudo dá errado a gente tende a culpar algum cara de cabelo engraçado.

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  2. Conseguiu escrever tudo o que penso...

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  3. Interessante! A vida é muito rica e complexa, intrincada e multiforme, que de fato as páginas dos nossos jornais diários não poderiam retratá-la, senão palidamente e excluindo muiiita coisa.

    A questão "o que pode ser uma notícia?" é terrível, porque delimita tanto! Exclui tanto! Talvez seja uma das piores questões enfrentadas pelos jornalistas.

    Dizem que é possível reconhecer o grau de amadurecimento de um povo pelas suas leis. De fato. Mas, também, penso que também é possível reconhecer o grau de amadurecimento de um povo pelo que ele escolhe ser notícia.

    Grande abraço. Estamos, agora, unidos pela blogosfera...

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  4. E essas notícias darão o senso de realidade num futuro próximo, quando for estudado aos olhos dos historiadores. Isso ocorre de maneira tal que ao estudarmos a História para entender nosso contexto enquanto povo, enquanto cidadão, nos basearemos naquilo que foi escolhido, naquilo que conseguiram transmitir.
    Felizmente, algumas coisas boas insistem em permanecer e aparecer, de modo que se encontramos apenas alguns cacos de vasos de cerâmica, ainda encontramos pedaços de belos vasos.

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pode falar, eu não estou ouvindo